sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS: MÉXICO CEDE A EXECUÇÕES PÚBLICAS

AJALPAN, México — O linchamento começou por volta das 19h, pouco depois que os irmãos terminaram suas entrevistas sobre o consumo de tortilhas.

Os moradores os confrontaram, confundindo a dupla com sequestradores. A polícia confirmou que os homens eram pesquisadores de uma empresa de marketing e os levou rapidamente para um local seguro. Os moradores irados tocaram os sinos da igreja na praça, de todo modo, reunindo centenas de pessoas.

A multidão tirou os irmãos da proteção policial. Finalmente, um homem com um capacete de motociclista caminhou até o centro da turba enlouquecida, encharcou os irmãos de gasolina e acendeu um fósforo.

Um vídeo da cena, feito por celular, passou durante dias na mídia local. As autoridades culparam a multidão e os boatos de que sequestradores estavam pegando crianças na rua. Uma autoridade local sugeriu que o partido de oposição era o culpado.

Mas a população de Ajalpan tinha outra explicação: cansada da corrupção e da indiferença do governo, a multidão criou sua própria justiça, parte de um antigo problema que, segundo as autoridades, está aumentando.

As mortes levantam perguntas difíceis para o México, salientando um fato alarmante: segundo alguns relatos, houve mais linchamentos públicos no último ano do que em qualquer outra época em mais de 25 anos.

Foram pelo menos 78 linchamentos no ano passado no México, mais que o dobro do ano anterior, segundo dados coletados por Raúl Rodríguez Guillén, professor e autor do livro “Mexico Lynchings, 1988-2014” (Linchamentos no México, 1988-2014).

Os atos da multidão nasceram da sensação de desespero e impotência compartilhada por muitos no México, onde 98% dos assassinatos ficam sem solução e o Estado está virtualmente ausente de muitas áreas. Segundo estimativas, apenas 12% dos crimes são relatados no México, em grande parte devido à descrença na Justiça.

“Há uma crise em termos do crescimento da violência e da criminalidade e uma erosão paralela da autoridade e do Estado de direito”, disse Guillén.

Entrevistas com dezenas de moradores sobre o linchamento dos irmãos —David e José Abraham Copado Molina— revelaram pouco arrependimento. O medo de que os suspeitos pudessem escapar com a ajuda da polícia superou as preocupações de derramar sangue inocente.

“Se eles eram inocentes, e não estou dizendo que eram, então é um caso de um grupo pagar pelos crimes de outro”, disse Emanuel Petla, 33. “O que aconteceu no dia dos linchamentos é uma situação que já vem se desenrolando há algum tempo. Uma coisa leva a outra. Insegurança, frustração, confusão e cansaço.”

A polícia não está livre da ira coletiva. No ano passado, cinco policiais foram espancados depois que mataram um aldeão durante uma operação. Dois deles morreram.

No vilarejo de Iztapalapa, os moradores penduraram faixas avisando que ladrões não serão entregues à polícia. A vingança será cobrada de suas mães. Em setembro, dois homens foram linchados no Estado de Chiapas, acusados de roubar um carro.

Grupos de autodefesa surgiram no México para combater o crime organizado, preenchendo o vazio deixado pelas forças do governo, que são incapazes de combater as gangues criminosas, não têm vontade para tanto ou trabalham ativamente ao lado delas. Com isso, criou-se um comportamento predatório entre a população, para a qual os linchamentos dão a sensação de controle. No entanto, a comunidade às vezes se engana, como ocorreu com os irmãos Copado.

“Não posso imaginar como isto está acontecendo em nosso país”, disse Pablo Copado, irmão dos homens linchados. “Eles pisaram na integridade de meus irmãos, em sua humanidade.”

No dia em que morreram, os irmãos tinham vindo a esta cidade de cerca de 60 mil habitantes para pesquisar sobre o consumo de tortilha por crianças. À noite, um grupo de moradores quis saber por que eles estavam perguntando sobre as crianças. Os irmãos explicaram e mostraram identificações. Mas os residentes ficaram agressivos, segundo testemunhas, até que a polícia levou os irmãos embora.

Quando a polícia anunciou que os dois eram inocentes, poucos acreditaram. Alguém afirmou que uma garota podia testemunhar que fora agredida sexualmente. A menina foi levada ao recinto. “Ela disse que nunca os havia visto”, disse Enrique Bravo, o policial de plantão.

Então alguém começou a tocar os sinos da igreja, um chamado às armas. Centenas de pessoas acorreram à praça e os rumores começaram.

Roberto Hernández, 24, disse que ouviu falar que os irmãos tinham confessado. Miguel Hernández lembrou que seus vizinhos gritaram: “Venha com a gente, vamos pegar os ladrões!”

A multidão chegou ao prédio e arrastou os irmãos até a praça.

Santuário foi erguido diante da delegacia onde irmãos foram linchados em outubro de 2015 em Ajalpan, México (Cristopher Rogel Blanquet/Agencia el Universal)

Nos dias seguintes, um santuário foi erguido no estacionamento onde os irmãos foram imolados.

Alguns lamentavam o que o linchamento havia causado à cidade. “Temos muita cultura e tradição aqui, nossa comida, nosso artesanato”, afirmou o vice-prefeito, Juan Guzmán. “Mas agora somos conhecidos por isso.”

Para outros, a reputação não é tão ruim. Alguns moradores acreditam que passará muito tempo antes que outro ladrão ou possível sequestrador apareça. “Isso tem um efeito”, disse Donardo Andrade, 27.

A família Copado, que vive na Cidade do México, está arrasada. Os filhos gêmeos de David, de 2 anos, choram por seu pai, embora sejam muito pequenos para saber o que lhe aconteceu, disse a mãe dos irmãos linchados, Dulce María Montero. “Eles sentem falta do pai”, afirmou.

Fonte: Uol

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