terça-feira, 28 de maio de 2013

MORADOR DO COROADINHO - "ATOR LAUANDE AIRES MOSTRA O TEATRO MARANHENSE AO BRASIL"

Conhecemos bem os versos “O Brazil não conhece o Brasil/ O Brasil nunca foi ao Brazil”, interpretados por Elis Regina no álbum Transversal do Tempo. Querelas do Brasil, composta por Maurício Tapajós e Aldir Blanc, acusa a elite econômica do país de sufocar a cultura popular. A canção é de 1978. E alguma coisa mudou. Mas não o suficiente para fazer de nossos bricantes cidadãos plenos.

Ainda assim, o Brasil é um país repleto de inteligências e sensibilidades desconhecidas. E esse ocultamento reflete uma democracia imperfeita. Um espetáculo da Santa Ignorância Cia. de Artes (São Luís – MA) expõe, por um lado, o talento da trupe e, descendo ao âmbito da ficção, esquadrinha os sentimentos de um desses excluídos pelo modo voraz de produção capitalista.

A peça O miolo da estória tira do anonimato um brincante de bumba-meu-boi do Maranhão. E faz questão de frisar que a representação da ingenuidade não lhe cai bem. O artista popular é um ser crítico e que percebe o que ocorre no mundo. Sabe da exploração e da mais-valia, do cinismo dos políticos, do sensacionalismo de uma imprensa descompromissada com questões da justiça social. E principalmente não quer ser mais massa de manobra.

Então, O miolo da estória- com texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia de Lauande Aires – se desdobra num arco crítico desse mundão que Deus nos deu.

No solo, o intérprete mostra a história de João Miolo, um trabalhador da construção civil e brincante do bumba. Ele é aquela figura que fica embaixo do boi, mas na realidade ele quer ser cantador, para ser visto e reconhecido. Sua tentativa de mudar de papel é rejeitada pelo dono da brincadeira. E o operário se sente explorado no trabalho e no folguedo.


Como pedreiro, ele tem consciência da temporalidade do seu “emprego”. Como brincante, chega à conclusão de que o dono do brinquedo negocia apresentações em troca de votos. O apoio que chega e uma verba maior só aparece quando eles são enxergados como eleitor, quando favorecem determinado político.

Nosso personagem fica revoltado e resolve não sair da boiada daquele ano. Mas isso lhe custa em ressentimento e ao tentar afogar suas mágoas na bebida, vai trabalhar embriado e termina ferindo o pé. Nesse ponto o espetáculo revela a origem religiosa dessas manifestações da cultura popular e que muitas vezes perdem seus elos para virar atração para turistas.


E Miolo fica doente. Com o pé infectado, não pode nem trabalhar e nem brincar. Se volta para o santo de sua devoção – São Pedro – e faz uma promessa para não perder a perna.

De uma só tacada o autor expõe uma sociedade desigual e excludente, o risco da brincadeira virar número para manipulação política e a ruptura com a religião e o ritual, que está na origem de muitos desses folguedos.

É uma realidade crua apresentada pela Santa Ignorância Cia. de Artes. O espaço de atuação é uma circunferência de 4 x 4 metros, arrodeada de maracás e seis caixotes de madeira. No chão, o couro de um pandeirão. Dentro do círculo estão uma escada de madeira, onde estão pendurados capacetes, enxada, pá, pandeiros. Mais à esquerda um conjunto de latas e um par de botas. Mais à direita um carro de mão pendurado com uma imagem de São Pedro.


Esses elementos são ressignificados ao longo da peça. A escada é a casa. Duas peneiras de areia e um pá formam uma bicicleta. O carro de mão pode ser o boizinho. Esse cenário é dinâmico e o ator parece fazer mágica desses elementos quando desloca suas funções. Do alto, na bicicleta, ele critica a mobilidade urbana, o egoísmo dos motoristas. E depois a imprensa sanguessuga.


A autoria da peça pulsa durante todo o espetáculo. A performance de Lauande Aires é para ser aplaudida. Ele canta, dança, utiliza um linguajar simples a partir de cinco personagens. O próprio João Miolo, Nêgo Chico, Cazumba, Amo do Boi e Curandeiro. Há uma coreografia perfeita do gestual do ator e o jogo que faz com todos os elementos.

Em resumo: é um espetáculo forte, com ideias e execução bem articuladas para criticar a sociedade, mostrar o fosso simbólico da exclusão social, o desespero e a precariedade das condições de vida de determinadas categoria de trabalhadores. A religião entra com suas sanções e salvações. A crueldade do capitalismo é ressaltada. E é cobrada da mídia uma atuação que condiga com sua dimensão de espera pública. E, principalmente, que todo ser humano deseja e merece ser reconhecido e iluminado.

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